Empresas e credores adiam solução para dívidas
A esperada onda de reestruturações de dívida na pandemia ainda não começou. Por ora, o que empresas e credores estão fazendo é adiar prazos, deixando a solução dos problemas para daqui a alguns meses, quando o cenário estiver mais claro. Mas o que casos recentes, em especial o da International Meal Company (IMC), sinalizam é que a covid-19 pode interferir em favor do acionista no cabo de força com os credores.
“Há muito debate sobre isso, mas tudo muito incerto ainda. O que temos visto são credores aceitando postergar pagamentos de parcelas, e não perdoar o não pagamento. É muito cedo para dizer se haverá uma tendência favorável à empresa. Mas credores têm colaborado como podem”, afirma Diego Gonçalves Coelho, sócio do Coelho Advogados.
A IMC, que ficou sem receitas ao fechar os restaurantes na crise, optou por renegociar com debenturistas, antes mesmo de descumprir efetivamente compromissos financeiros (“covenants”). Como penalidade, os credores, de início, pediram que a remuneração dos papéis saísse da casa do CDI mais 1% para CDI mais 10%, taxa dos papéis no secundário, por conta do aumento do risco. Mas tiveram de se contentar com CDI mais 5% e adiar o recebimento de remunerações para o vencimento dos papéis. Alguns avaliaram no mercado que os debenturistas se contentaram com as condições porque acelerar a dívida poderia levar o caso à Justiça, que, pelo ineditismo da pandemia, tenderia a preservar empresas.
Uma fonte diz que, para ficar mais compatível ao risco, o prêmio deveria ter ficado muito mais próximo do secundário. “Mas se fechasse numa taxa mais alta, o credor se apropriaria de uma parcela muito maior do resultado da empresa do que o acionista. O que, na prática, seria a empresa ‘quebrar’. Aí desalinha. Se a empresa quebra, o acionista não tem nada mais a perder. Provavelmente não havia uma saída ótima para todo mundo”, diz.
Apesar de não terem conseguido o que queriam, os debenturistas da IMC obtiveram um bom incremento na remuneração, fato raro para uma aplicação como essa. Em momentos de crise, é comum que ocorra, em alguma medida, uma “transferência de valor” do acionista para o credor. A empresa suspende dividendos, recompras e tenta focar em manter o fluxo de pagamento das dívidas em dia. Se não consegue, precisa pagar um prêmio ao credor por isso.
Roge Rosolini, sócio da Journey Capital, diz que esse rebalanceamento é a lógica do crédito versus a participação acionária (“equity”). “Temos visto fundos de ações comprarem debêntures das empresas que eles acompanham. A dívida tem senioridade em relação ao equity. Num cenário tão difícil de imaginar o que esperar das empresas, a dívida das companhias líderes em seus setores e bem bancarizadas tende a ser excelente aposta”, afirma Rosolini.
No Brasil, diz um gestor, existe a particularidade de os covenants das emissões, mesmo para as empresas “high grade” (menos arriscadas), serem muito restritivos, ou favoráveis aos credores. “O padrão é negociar a penalidade caso a flexibilização de limites de alavancagem seja necessária. Então, os credores usam seu poder de barganha para se apropriar da melhoria de resultado futuro da empresa”, diz. A única questão é que se o credor esticar demais, a empresa pode não ter como pagar a dívida.
O pacote de socorro que o BNDES desenhou para as aéreas prevê uma debênture com um bônus conversível em ações. Ou seja, o banco alivia a situação financeira agora, mas já amarra a possibilidade de ter um ganho quando as empresas se recuperarem. Mas veio a discussão sobre o preço dessa conversão. O banco queria as cotações em tempos de crise. Gol, Azul e Latam entendem que os preços pré-coronavírus seriam mais justos, o que significaria entregar uma fatia acionária menor ao banco quando voltarem a ter saúde. Ainda não se tem um desfecho para esse caso.
Mariano Andrade, sócio da Polo Capital, não enxerga exatamente uma transferência de riqueza do acionista para o credor nessas renegociações. “Essa transferência ocorre, no sentido contrário, do credor para o acionista, nos processos de recuperação judicial, em que basicamente se rasga a dívida”, diz, referindo-se aos elevados “haircuts” (descontos) nesses processos. Quando a empresa vem à mesa de negociações porque descumpriu ou vai descumprir um covenant ou não tem como honrar um pagamento, ele diz, o que se tem é uma reprecificação de risco. “Ela vai ser menor ou maior dependendo do tamanho do problema e do tempo que ela precisará para arrumar a casa.”
Segundo ele, em casos em que a empresa corre o risco de entrar em recuperação judicial, o credor basicamente passa a se confundir com o acionista. “O credor quirografário, se o equity perde muito valor, é a próxima fatia mais júnior da estrutura de capital. Ele se confunde com o acionista. Se ele vai dar carência ou prazo maiores, é justo a adoção de algum mecanismo em que se beneficie da recuperação da empresa à frente, como participação acionária ou remuneração adicional em função do Ebitda ou um prêmio”, afirma.
Andrade enxerga uma tendência dos administradores de dizer que os credores estrangulam as companhias. “Se o acionista acha que o credor está fazendo isso, ele sempre tem a prerrogativa de fazer um aumento de capital e honrar os compromissos assumidos”, afirma o sócio da Polo. “O que não pode acontecer é o credor ser benevolente num momento em que a empresa precisa dele para cruzar a ponte sem ser adequadamente remunerado por esse aumento de risco”, diz.
O sócio da Polo espera que as reestruturações futuras sirvam para que as empresas abandonem o que chama de “vício do CDI”. “Se eu fosse diretor financeiro, estaria preocupado em precificar o meu risco hoje com uma taxa nominal. O país pode entrar num cenário de problema fiscal e ter de colocar títulos de dívida a taxas muito altas, arrastando o setor corporativo junto. Espero que as empresas e credores estejam atentos a isso. Essa é uma boa razão para cortar o cordão umbilical do CDI.”
Coelho observa que as dívidas estão sendo postergadas hoje, mas estão crescendo, por conta da incidência de juros. “O que é certo é que, após esse período de carência, diversas empresas não aguentarão pagar as dívidas e haverá renegociações pesadas envolvendo recomposição de garantias e possivelmente culminando em recuperações judiciais ou falências”, afirma. Jornalista: Ana Paula Ragazzi Fonte:Valor Econômico Leia mais em portal.newsnet 08/06/2020